O Sabiá de perdões
No artigo “Respeito com o Caipira”, publicado anteriormente nesta coluna, havia uma referência ao professor Francisco Damante e suas observações a respeito do povo caipira. Ele afirmava ter conhecido um legítimo matuto de Perdões, um genial artista popular que criava versos e melodias resultando em inspiradas composições musicais. Isso ocorreu em 1920. Meses depois, em maio de 1921, O Atibaiense publicou outro artigo abordando um tema semelhante.
No entanto, desta vez, o autor assinava como X de Castro, e não mais Francisco Damante, e o artista popular mencionado chamava-se Crodino dos Anjos. Ambos também eram de Perdões. No artigo, o autor se referia ao matuto de Perdões, Crodino dos Anjos, como o mais inspirado dos poetas sertanejos.
Ele dizia: “Quem o lê com atenção e interesse sente imediatamente a deliciosa e doce sensação de estar na agradável convivência e no contato comunicativo de um de nossos sertanejos, ouvindo-se embevecido e com a alma enlevada, deleitando-se com seu falar acaipirado e natural, com sua linguagem simples e franca de dicção rústica, mas cheia de poesia, na qual a alma canta o que lhe vai ao íntimo, chorando às vezes a dolorosa saudade de uma linda e querida Eva, que se foi com o amanhecer, ao cantar do sabiá”. E continua: “O poeta trovador Crodino dos Anjos pode não ser apreciado por muitas pessoas que gostam de ouvir palavras rebuscadas e difíceis, que os poetas pesquisam nos dicionários por meses a fio.
No entanto, será compreendido e lido por todos aqueles que sentem que a poesia deve ser natural e sem afetação, que jorra do suor assim como um filete de água que escapa de uma fenda na montanha”. Nos dois artigos, tanto o de 1920, quanto o de 1921, ocorre a mesma abordagem em relação à comparação entre a cultura erudita e a popular, bem como a associação da imagem da natureza ao descrever as qualidades do poeta popular. Isso nos leva a crer que se trata das mesmas pessoas, apesar dos nomes diferentes. Isto é, muito provavelmente foi Francisco Damante que escreveu também o texto de 1921.
O pássaro sabiá, como imagem poética, já havia sido utilizado por Gonçalves Dias no poema “Canção do Exílio”, escrito em 1843, durante sua estadia em Portugal. Nele, já havia a analogia entre elementos naturais, expressa pelo sabiá, e o sentimento de saudade e nostalgia que remetem à infância.
No poema do Matuto de Perdões, embora simples e espontâneo, também aparecem os mesmos elementos simbólicos na figura do sabiá, considerado popularmente como a ave nacional do Brasil.
Assim era o poema “O Canto do Sabiá”, do poeta popular de Perdões, publicado no jornal O Atibaiense em 1921.:
Quando é pra manhecê
Na hora do dia crareá
Eu acordo suspirano
Cos canto da sabiá…
Quando oçô quase choro
E pego a suspirá…
Fico pensano, pensano
Nos canto do sabiá
Quando chego na porta
Inté paro pra escuitá…
Fico cheio de alegria
Cos canto do sabiá…
Da minha boa menina
Já pego me lembra
Quando vem manhecendo
Cos canto do sabiá…
Minina, si pudesse
Eu te iria buscá
Pra ouvi junto comigo
Os canto do sabiá…
Aqui em casa, minina
É pra nóis regalá…
Ouvindo tudo dia
Os canto do sabiá.
Texto originalmente escrito no jornal "O Atibaiense", em 25 de julho de 2023
* Márcio Zago é artista plástico, artista gráfico de formação autodidata, fundador do Instituto Garatuja e autor do livro “Expressão Gráfica da Criança nas Oficinas do Garatuja”. Criador e curador da Semana André Carneiro