Sem Pedir Licença
- CTC Atibaia
- 25 de abr.
- 3 min de leitura
Um chamado ao respeito e à escuta na preservação da cultura caipira
Há uma sabedoria silenciosa que habita os territórios: está nos gestos repetidos com devoção, nos sons que ecoam desde tempos imemoriais, nas palavras que carregam o peso e a leveza da história viva. Preservar essas expressões não é apego ao passado — é compromisso com a continuidade de algo que ainda pulsa, apesar das pressões e atropelos de um tempo acelerado e, muitas vezes, desatento.
Infelizmente, temos assistido a uma crescente tendência de intervenções externas que, mesmo bem-intencionadas, desconsideram o valor simbólico e o sagrado das manifestações culturais locais. Chegam, se instalam e "propõem", mas sem ouvir, sem observar, sem antes pedir licença. O resultado? Tambores desafinados que soam fora do compasso da comunidade, interferindo no tecido delicado que sustenta a identidade de um povo.

Astúcia travestida de valorização
Em meio às tentativas legítimas de fortalecer as culturas tradicionais, surgem também aqueles que se aproximam não por respeito ou compromisso, mas por conveniência. São iniciativas que se alimentam das expressões populares para promover nomes, projetos ou eventos, muitas vezes alheios ao sentido profundo daquilo que dizem representar. Apropriam-se dos símbolos, das linguagens e dos rituais, mas esvaziam seu conteúdo — transformam o vivo em produto, o sagrado em performance, a história em vitrine.
Essas ações não apenas desrespeitam as comunidades que mantêm essas tradições, mas também contaminam o olhar externo, criando uma imagem distorcida da cultura local. O que era celebração se torna espetáculo. O que era resistência vira oportunidade de marketing. É como se a riqueza simbólica de um povo pudesse ser usada sem que se compreendesse sua origem, suas manifestaçãoes, sua fé.
E o mais grave: muitas vezes, esses movimentos se colocam como agentes de preservação, quando, na prática, promovem a descaracterização.

C iclo Natalino – Atibaia (Igreja do Rosário)
Compromisso que nasce do chão e da escuta
Na contramão dessas iniciativas, existem experiências comprometidas de fato com a preservação e o fortalecimento da cultura caipira. São projetos que não chegam impondo — mas escutando e agregando. Que não se apropriam — mas compartilham. Que reconhecem que cultura não se inventa de fora pra dentro, e sim se cultiva com quem vive nela e por ela.
O Centro de Tradições Caipiras de Atibaia (CTC) é exemplo vivo desse compromisso. Mais do que preservar, o CTC Atibaia busca manter acesa a chama da cultura caipira como expressão viva, coletiva e em constante diálogo com sua comunidade. Suas oficinas, aulas, ensaios, festivais, os encontros entre gerações — tudo é pensado com reverência e respeito. Cada ação parte da escuta e do envolvimento real com os fazedores de cultura, com quem carrega a memória e a prática do modo de vida caipira no corpo, na fala e na memória
A o longo do tempo, o CTC se tornou também um ponto de convergência de pessoas que, vindas de diferentes trajetórias, reconhecem nesse espaço uma oportunidade de aprender, contribuir e fortalecer a cultura de forma ética, sensível e solidária. Aqui, quem participa não quer “aparecer”, mas pertencer — e isso faz toda a diferença.

Cuidar é resistir
Diante de tantos ruídos, é preciso afinar os ouvidos, corações e mentes. Cultura não é cenário, nem enfeite para discursos bonitos. Ela é fundamento, é linguagem profunda de um povo, é elo entre passado, presente e futuro. Exige cuidado, tempo e respeito. Qualquer tentativa de transformação precisa, antes de tudo, vir acompanhada de escuta, humildade e senso de pertencimento.
O que está em jogo não é apenas a preservação de uma estética ou de uma prática. É a continuidade de modos de vida inteiros, tecidos com afeto, fé e sabedoria. Perder isso é empobrecer nosso território— e a nós mesmos.

Que este texto sirva como um alerta: antes de fazer parte, é preciso pedir licença. E mais que isso, é preciso merecer o lugar que se ocupa.

“...o primeiro passo para liquidar um povo”, disse Hub, “é apagar sua memória. Destrua seus livros, sua cultura, sua história. Então peça para alguém escrever novos livros, fabricar uma nova cultura, inventar uma nova história. Em pouco tempo a nação começará a esquecer o que é e o que era. O mundo ao seu redor esquecerá ainda mais rápido…” - Milan Kundera, O Livro do Riso e do Esquecimento (1979)
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