No Braço Dessa Viola
Num cocho perto da porta,
Come milho um punga baio,
um homem taquaras corta
Para fazer um balaio.
E um caboclinho indolente,
Que baixinho cantarola,
recostado no batente
vai ponteando a viola
(Sítio de Caboclo, Cornélio Pires)
Vamos falar da viola caipira, mas antes de entrar no assunto, um dedinho de prosa
Cenário 1
Você se depara com a imagem de uma viola caipira, olha bem pra ela e matutando se pergunta: que tipo de música vai sair dela?
Cenário 2
Você assiste a um vídeo qualquer que retrata um local rural, aparece uma porteira ou uma estrada de terra e você parece já ouvir qual instrumento faria a trilha sonora da cena.
Não à toa a viola tem o sobrenome “caipira”, algo tão nosso. Quando ouvimos o seu som ou vemos a sua imagem a conexão com estas paisagens é inevitável. E isso é bom? É ruim? Não cabe a mim, responder. O caminho a percorrer é de livre escolha. A arte é libertária! Ela possibilita caminhos tão diversos quanto permite a nossa imaginação. Escolher ficar ao chão, junto às raízes ou “alçar vôo” em novas sonoridades. E entre as escolhas qual a certa? Qual a errada?
Me permito colocar aqui constatações que partem naturalmente da minha própria vivência. Percebo na comunidade que me circunda uma sede inesgotável na busca da sonoridade da viola em seu contexto caipira – seus ritmos, sua temática, seu jeitão de tocar e cantar. Também percebo há anos, um forte movimento de religação com paisagens sonoras que nos levem a sermos/estarmos pertencentes às nossas raízes identitárias. Há neste contexto, contudo, um outro movimento que reivindica a necessidade de “modernizar” o cancioneiro caipira, agregando novos instrumentos, modos de cantar e tocar. O sertanejo universitário é bom exemplo disso, que segue sendo apresentado como a “evolução” da música caipira. Afirmam também que, se ficarmos “somente” tocando a música que nos remete à nossa memória afetiva estaremos engessando a viola ou que nos faremos, artisticamente, prisioneiros dentro da caixa (seja lá o que isto queira dizer) e etc...etc.
Isto posto pergunto:
A obra “Mona Lisa”, de Michelangelo, produzida por volta de 1500, seguindo esta lógica, deveria ser removida da parede do Louvre (está no museu desde 1797), colocando em seu lugar uma obra contemporânea? Afinal uma obra com mais de 500 anos, seguramente estaria ultrapassada e fora dos padrões estético-artísticos do nosso tempo. Ainda dentro das artes plásticas: o barroco, o neoclassicismo, o realismo, impressionismo - expressões artísticas criadas a partir de movimentos nascidos entre os séculos XVII e XIX deveriam ser repaginados e/ou não mais utilizados para produzir obras de arte nos dias de hoje? O gigantesco legado de Johann Sebastian Bach (e tantos outros geniais compositores), grande parte produzido entre os anos 1700/1750, não mais deveria ser executado pelas orquestras mundo afora? E o que dizer dos prédios históricos? Demolem-se todos? Alerto para que antes de formularmos qualquer reflexão a respeito, que tomemos muito cuidado ao apontar esta ou aquela obra/legado artístico como genial ou desimportante.
O riquíssimo universo da música caipira
Lembro que a chamada “música caipira” tem diversos ritmos – toada, cururu, querumana, cateretê, recortado, pagode de viola, cipó-preto, polca paraguaia, guarânia, rancheira, samba rural, batuque, lundu, congado, folia, corta jaca, rastapé, batidão, cana verde e a moda de viola, esta tão erradamente nomeada para todos os ritmos descritos. Onde na música popular se encontra tamanha variedade de ritmos? Aos pesquisadores e apreciadores, o que não falta é assunto quando o tema é música caipira!
Historicamente nascida nos aldeamentos indígenas, mescla-se ao legado português, une-se aos batuques de matriz africana, aos ritmos latinos numa sempre generosa e dinâmica mistura de sons e sotaques. É tamanha a sua riqueza e diversidade que considerar a música caipira como “única” chega a soar estranho. Acrescento ainda que a cultura caipira, e isso inclui a música, não se fecha em si mesma, mas sim e sempre em contato com o outro.
Importante esta reflexão para que nos situemos no contexto das artes e reavaliarmos posturas no mínimo contraditórias sobre o que é certo ou errado acerca do assunto. Como se houvesse! O certo e o errado é causa divina. Não cabe a nós, pobres mortais, deliberarmos sobre. Nossa tarefa é fazer o bem e produzir arte. Seja de qual jeito for. Naturalmente o que é bom perdurará. O contrário será descartado. Como tudo o que é orgânico. Sem grandes discussões. A boa e a não tão boa obra artística (e isso também se pode questionar) não carece de discussões intermináveis sendo até por isso, estéreis. Por si só, ambas se resolvem.
A polícia da viola, presente em ambos os casos, daria a sua melhor contribuição cumprindo cada uma o seu eito. De forma honesta. E que cada um colha desse roçado os seus melhores frutos.
O som que encanta
Ela tem nome e sobrenome. Veio com os portugueses em meados de 1500. Suas cordas eram de tripa e pode-se dizer que já é uma senhora: tem por volta de 800 anos.
Instrumento musical de cordas dedilhadas, a viola caipira desde então vem contando a nossa história (e fazendo parte dela) há gerações. Por isso é tida e havida como símbolo da música caipira. Aliás, o sobrenome que carrega – “Caipira” – só existe aqui. Em nenhum lugar do mundo você vai encontrar o termo, pois tem origem tupi: Ka’apir – Kaa-pira que significa cortador do mato. Quando aqui chegou era conhecida como “viola portuguesa” e tem origem arábico-persa. O período de ouro das violas de mão portuguesas ocorreu nos séculos XV e XVI, época dos grandes descobrimentos, quando provavelmente os primeiros instrumentos de cordas chegaram ao Brasil pelas mãos dos portugueses.
Como era e como está hoje
A viola tem a sua estrutura básica mantida nos dias de hoje com algumas poucas modificações. Cravelhas de madeira foram substituídas pelas tarraxas de metal e o número de trastos que de dez passou a doze, da pestana ao pé do braço.
O encordoamento que antes era de tripa, apresenta-se hoje com cinco ordens de cordas metálicas em pares (braguesa, amarantina, beiroa e campaniça) e a viola toeira da região de Coimbra, tem em suas primeiras ordens, de baixo para cima, com cordas duplas e as duas últimas, com cordas triplas.
Aqui a viola se reinventou
No Brasil, a exemplo de Portugal, a viola manteve seu patamar de instrumento popular, muito difundido e encontrado em todas as regiões de ambos os países.
Hoje, conhecem-se dezenas de afinações da viola caipira onde as mais usadas no centro sul são: Cebolão D e E (utilizada em São Paulo), Boiadeira, Rio Abaixo (região de Belo Horizonte e norte de Minas) e Natural.
Seguem as afinações ordenadas do primeiro ao quinto pares de cordas:
Cebolão Ré = Ré, Lá, Fá sustenido, Ré, Lá
Cebolão Mi = Mi, Si, Sol sustenido, Mi, Si
Boiadeira = Ré, Lá, Fá sustenido, Ré, Sol
Rio Abaixo = Ré, Si, Sol, Ré, Sol
Natural = Mi, Si, Sol, Ré, Lá
Aqui a razão do nome de duas das afinações:
Cebolão – diz-se que a afinação ganhou este nome porque quando os violeiros tocavam as mulheres choravam como se estivessem descascando cebola.
Rio Abaixo – Os antigos afirmavam que o diabo em noites de sexta-feira descia em seu barco rio abaixo com sua viola temperada sob muito feitiço. As moças que estavam às margens deste rio e se banhasse nele, afogavam-se e suas almas eram arrebanhadas pelo tinhoso.
O assunto é vasto (e cheio de encantamentos), por isso, voltarei a ele em breve. Separei pra finalizar a leitura, trecho do poema “Ideal de Caboclo”, de Cornélio Pires (do livro Musa Caipira, 1910). Inté ;)
Ai, seu moço, eu só quiria
Pra minha filicidade,
Um bão fandango por dia,
E um pala de qualidade
Pórva, espingarda e cutia,
Um facão fala-verdade
E uma viola de harmonia
Pra chorá minha sódade
Ruth Rubbo
Há mais de quinze anos atua em gestão/produção cultural. Filha, neta e bisneta da cultura caipira paulista, sua grande paixão. Violeira, é autora de diversos projetos culturais com foco na defesa e fomento de nossas raízes identitárias.
Membro da Comissão Paulista de Folclore.
Fundadora do Centro de Tradições Caipiras de Atibaia